domingo, 8 de novembro de 2015

Um certo alguém da Silva

Autor convidado: Matheus Bria

São cinco da manhã. Ele precisa levantar, já que o caminho até o trabalho é demasiadamente longo. Sai de casa antes que as duas filhas pequenas acordem. Aproveita para depositar um beijo sob a testa das duas. Ele sente a falta delas, mas não vê outra maneira para sustentá-las. Desce o morro e cumprimenta os mesmos rostos que avista todas as manhãs. Avista jovens armados e se entristece após lembrar dos amigos que morreram após sucumbirem à marginalização. Carregava consigo valores morais herdados da mãe, ela sempre o ensinou a importância de ser justo e honesto. Nunca desviou-se completamente desses valores, mas algumas vezes questionou-os e era como se a vida a todo instante lhe propusesse desafios, nos quais precisava provar o quão bem educado fora. Ele entra no ônibus e se senta. Dois garotos bem vestidos, com uniformes escolares debatem sobre faltar a aula daquele dia e irem para a praia. Não consegue disfarçar um sorriso, talvez a sua forma de disfarçar seu inconformismo e abaixa a cabeça. Tudo poderia ser tão diferente se tivesse acesso aqueles livros, os mesmos que os garotos a sua frente carregavam de maneira tão indiferente. Sempre ficava maravilhado com a habilidade que alguns tinham de entender aquelas maravilhosas curvaturas negras a tinta, que estendiam-se sobre aquelas folhas com um cheiro tão peculiar, que o despertavam para mais um sonho não concretizado. Não era um sujeito muito esperto, mas sabia a quantidade de conhecimentos que tinham naquelas páginas. Conhecimentos aos quais, tivera seu acesso impedido. Desce do ônibus e entra no prédio onde ele trabalha há dez anos. Seu primeiro e único emprego. Coloca seu uniforme azul, em conjunto com as botas negras e pega a vassoura, sua fiel amiga de todos os dias. Sentia-se em outro mundo, completamente distinto do seu, cada vez que deixava sua velha e debilitada casa e entrava naquele edifício de pessoas tão bem apessoadas. Não sabia exatamente o porquê, mas não tinham brancos na favela e nem negros naquele edifício de nome francês. Seria algo tão simples quanto uma cor de pele, o suficiente para traçar o seu destino, tal como de seus filhos e netos? Por que sempre eram seus irmãos raciais os que desempenhavam as funções menos importante? Por que os doutores que conhecia tinham sempre o tom de pele claro? Diversas novas questões atingiram sua mente no caminho de volta para casa. Subiu o morro, tal como fazia todos os dias e cumprimentou os mesmos rostos que via todas as noites. Chega em casa quando as duas filhas já estão dormindo. Aproveita para depositar um beijo sob a testa das duas.  Ele sente a falta delas, mas não vê outra maneira para sustentá-las e se deita no sofá as observando, expressões tão inocentes e alheias a tudo aquilo, que teme o dia em que ambas conhecerão o mundo real, crescendo em si o desejo para que elas se tornassem pessoas virtuosas e quebrassem aquele ciclo vicioso que estendia-se em sua família desde os tempos de senzala: o conhecimento inalcançável e o conformismo em viver com o pouco que lhe é cabível.

Nenhum comentário:

Postar um comentário